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domingo, 19 de dezembro de 2010

Sobre amigos, água no pulmão e zeros à esquerda

Por que é tão difícil fazer amigos e tão fácil distanciar-se deles? Ainda mais difícil é tentar revê-los. Tem sempre uma porção de coisas sendo feitas e outras por fazer, parece que a vida nunca acha tempo para se encontrar conosco. Ou o contrário, mas, vá lá, vamos botar a culpa em outro para não pesar os nossos ombros. Não agora, tão próximo do final do ano, nós assim tão avizinhados das novas promessas, votos e listas de metas para uma vida que pretendemos e, provavelmente, apenas pretenderemos. É um gole imenso de água escapando por entre os dentes. Uma sede alojada no pulmão. Vai jogar água lá, vai? Então, prenda a respiração. A vida faz perder o fôlego, mas não sufoca. Está sufocado? Então, não é nada disso. Também não sei escrever mapas. O jeito, vai ver, é urinar pelo caminho e esquinas. Os cães ensinam, experimente. Sei apenas que estou fazendo mil coisas e ainda vou fazer outras mil. Plantar zeros à direita, porque é preciso garantir o pão de cada dia. Também vou plantar muitos outros zeros à esquerda, porque existem coisas impagáveis que precisam ser feitas a qualquer custo, assim como existem outras que precisam ser desfeitas e, tanto umas quanto outras, não custam nada. Mas, somente os loucos conseguem se dedicar a elas. Há círculos que não retornam ao mesmo ponto. Mais lados do que parece. Há saídas sem túneis. Eu sei, por mais que nos afastemos, existem seres que não podem ser abandonados. Mesmo que nossa fraca memória se esqueça, há aqueles que trazemos conosco. Em tudo aquilo que me faz sentir vivo, em tudo aquilo que faço para além da fome do estômago e da satisfação do umbigo, em todas essas coisas mágicas que nos ultrapassam e dilatam, fazendo o corpo esquecer que é composto de órgãos, em tudo isso que não se pode mensurar, nos zeros plantados à esquerda, eu sinto que existem outros gestos aos meus enraizados. É quando os meus pulmões se enchem de água e eu respiro pelas brânquias.

sábado, 18 de dezembro de 2010

“Irradiar bondade é maravilhoso, porque é tônico, revigorante, vitalizante. Mas apenas ser é ainda mais maravilhoso, porque é interminável e não exige demonstração. Ser é música, que é uma profanação do silêncio no interesse do silêncio, e portanto transcende o bem e o mal. A música é a manifestação da ação sem atividade. É o puro ato de criação nadando em seu próprio seio. A música não estimula nem protege, nem busca nem explica. A música é o som silencioso feito pelo nadador no oceano da consciência. É uma recompensa que só pode ser dada por nós mesmos. É a dádiva do deus que somos, porque deixamos de pensar em Deus. É um augúrio do deus em que todos nos tornaremos no devido tempo, quando tudo que é será além da imaginação.”


Henry Miller, Trópico de Capricórnio.



quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

As agonias estão entre as roupas que visto,
Não pergunto ao ferido como se sente, eu mesmo me torno o ferido,
Minhas dores se voltam lívidas para mim quando me apóio na bengala e observo.

Walt Whitman, Folhas de Relva.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Glutões dominicais

Os glutões dominicais refestelam seus corpos empanturrados procurando os cantos mais frescos da casa. Ensebam móveis e pisos com suas extensas superfícies de pele gordurosa. A boca entreaberta, a respiração ofegante. Tudo é estômago e transpira, seja carne, parede, ou mesmo os sonhos que gelatinosamente se movem dentro de suas cabeças pendidas. Decidiram-se pelas porções mais bem servidas. Pediram para caprichar, assim como foram ensinados a fazer, assim como é preciso que façam para tirarem sempre o melhor proveito e impedirem de serem enganados. Pagaram para comer e comeram porque pagaram – tudo, até o último grão. Nada pode ser deixado para trás. Não podem ser passados para trás. Nenhuma vantagem tirada às suas custas. Precisam sentir que saíram no lucro, que se deram bem. Por isso lambem os beiços, os pratos e fazem embrulhos para os cachorros. Depois balançam morosamente os seus rabos, em intensa sudorese, até a casa. Talvez, alguma coisa presente na consistência semanal dos domingos incite esta espécie de glutonaria familiar. Um estranho prazer que se esparrama e sufoca as calorosas horas da tarde com o peso de seus corpos repletos de pêlos, flatos e quilos e quilos de merda, que serão dissipados ao longo da longa noite de maravilhados gemidos e intensas contrações.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

"Ah, meu Deus, sociabilidade é só um grande sorriso e um grande sorriso não passa de um monte de dentes, eu gostaria de simplesmente poder ficar aqui e descansar e ser bom."

Jack Kerouac, Os Vagabundos Iluminados.

sábado, 27 de novembro de 2010

Clandestinas

Um longo tempo escolhendo palavras e elas encolhem, morrem de medo, esgueiram-se por cantos e frestas, até que aprendem a conviver com formigas e aranhas. Esta convivência as ensina a carregar farelos do meu dia-a-dia, as migalhas do pão esquecidas sobre a mesa, os grãos de açúcar preguiçosamente derrubados ao lado da xícara de café. As palavras aprendem a roubar as sobras de meus hábitos alimentares. Aprendem a produzir teias e multiplicar-se milagrosamente na poeira embaixo da pia, atrás do armário. As palavras incham em colônias clandestinas instaladas nos ocasos de meu lar. Finjo que não as percebo e embora eventualmente as esmage, elas retornam para recolher alimentos que escondem em alguma caverna bem embaixo do meu nariz.

domingo, 21 de novembro de 2010

"Então, por um instante, tive a mais tremenda sensação de pena dos seres humanos, sejam eles o que forem, o rosto, a boca cheia de dor, personalidades, tentativas de ser alegres, pequenas petulâncias, sensação de perda, piadinhas chatas e vazias que logo seriam esquecidas: ah, para quê? Eu sabia que o som do silêncio estava em todo lugar e que portanto tudo em todo lugar era silêncio. Suponha que de repente acordássemos e víssemos que o que achamos ser isto ou aquilo na verdade não é nada disto nem daquilo?"

Jack Kerouac, Os Vagabundos Iluminados.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

é preciso estar sozinho

Uma dose de solidão é necessária para que você não desapareça em meio ao infindável jogo das representações cotidianas.

domingo, 24 de outubro de 2010

troços&traças

as letras continuam troços
traços traçando troças
calçando sentidos em páginas
que as traças não alcançam

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Novela

afastaram-se como as páginas
de um livro sendo aberto

e a história pelo meio podendo ir e vir,
já não sabe ter fim: romance

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Tirando a teia

Tirando a teia do blog e a poeira do teclado, reviro pequenos bichos que sobrevivem embaixo de minhas unhas. Há algum tempo os humanos falam pelos dedos e por intermédio de ratos. A língua é ritmada de teclas, cliques, tleques e apliques de imagens e coisas assim. A minha linguagem não tem pressa e volta à sua rural infância para colher os grãos, catar os milhos que alimentam os olhos de palavras, pouco a pouco. Atinar isso não me leva à tona, mas ao profundo da minha ignorância. A lona do meu circo é bem rasteira e os olhos que visto insistem em ciscar os ciscos que do pé brotou. Qualquer dia aprendo qualquer coisa e um dia encimo, na cabeça que equilibro, o que o tempo ensinou.

sábado, 4 de setembro de 2010

Os burros

Que me perdoem os animais, burros por natureza, mas seu nome caiu tão bem como metáfora a determinados tipos de homem que agora são eles, os burros, que pagam o pato pela estupidez humana. Coisa típica de nossa espécie simbolizante andar por aí impondo a outras os seus intrínsecos defeitos e insignificâncias. Basta, porém, um breve olhar para percebermos que, dos burros, o que menos merece a fama, no sentido metafórico do termo, sem dúvida é aquele que a natureza concebeu por si própria e que nós, tomados por algum instinto de aproximação, ou priápica inveja, nomeamos burros.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Destino

Andava numa felicidade sem precedentes. Foram muitos anos amargando tropeços, mas a sua sorte estava para mudar. Uma cigana lhe vendeu esta convicção ao preço das moedas que ele tinha nos bolsos, nenhum centavo a mais ou a menos. Bastou que a mulher visse dinheiro em seu caminho para ele, imediatamente, deixar a prudência de lado e abraçar a crença de olhos fechados. O bom devoto, afinal, é a necessidade quem faz. Desdenhou dos conselhos amigos e passou, sim, a contar com os ovos na galinha. O que era seu estava encomendado. Para desfazer dos cuidados adotava ditados de última hora e reles grandeza. O que é do homem, o bicho não come. Reassumiu antigas dívidas e abriu novos crediários. Na festa que planejou para marcar a sua nova fase, só pôde comparecer de caixão lacrado. Andava numa distração sem precedentes, enquanto o carro-forte levava, em alta velocidade, o dinheiro ao seu destino.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Averbação

No começo, ele. Sem tempo ou corrosão. Tudo e apenas ele. Sem verbo. Sem danação. Somente coisas sem palavras. Nem ordens, nem nomes. Tudo desapropriadamente livre, solto. Apenas ele, colocado fora do caos. Punição? Tudo ordenadamente lindo e belo. Até que um silêncio, um sono profundo. Armadilha? Sob o arco da respiração, a fratura. Então, ela. Dois. Nada mais. Tudo e apenas eles, apropriadamente livres. Quase silêncio. Nenhuma treva ou maldição. O tempo inteiramente tempo, completo, absoluto. Ou nenhum. Os corpos insensíveis às nódoas. Sem verbo, sem corrosão. Apenas ele e ela. Eternidade? Paraíso? O sumo de um fruto espremido, consumido. Então, o verbo. O primeiro de muitos e muitos. Proibido? O verbo, a carne, o sangue. Averbado o princípio da invenção. Deus?

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Non sense, sua vida parecia filme.

Non sense, sua vida parecia filme. Por mais que tentasse ignorar, o estranho sempre lhe ocorria. Inevitável. Apenas um convite para ser feito ali, no trânsito comum de algumas ruas. A conversa deveria ser rápida. Deveria, mas o amigo atravessou uma esquina pelo meio do assunto. Empacou.

– É com ésse.

– Hã?

– Casa.

– Isso, lá em caza.

– Tá errado.

– Oi?

– Você disse caza.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

kinematófago & fagia

Quando a primeira palavra foi dita, o ouvido do mundo já estava pronto. Nasceram os olhos quando o tempo já tinha mãos e moldava a imagem na imagem. A palavra cantando os seus caminhos quando os homens deixaram de olhar para dentro e puseram seus olhos no rosto do mundo. (Espelho de assujeitamentos).

sábado, 5 de junho de 2010

suicida homeopático

topar o dedo mínimo do pé em cantos de parede e pés de mesa;

ler livros velhos que atacam a rinite alérgica;

apoiar sempre o mesmo braço no sofá áspero, para ler os mesmos livros que atacam a rinite, e deixar ainda mais morta a carne do cotovelo;

morder a língua;

comer as unhas;

prender o dedo em portas e gavetas;

prender os dedos um nos outros com superbonder;

ingerir gorduras e outras porcarias e depois sentar-se todo curvado para escrever;

escrever listas;

não ouvir música;

pensar demais (justamente porque não ouve música);

preocupar-se com os outros;

abaixar-se para pegar qualquer coisa e em seguida dar com a cabeça em quinas e prateleiras de armário;

utilizar internet de conexão lenta;

quarta-feira, 14 de abril de 2010

provérbio incauto

As folhas caem, mas a árvore continua de pé. É preciso lembrar de abastecer a moto-serra.

domingo, 28 de março de 2010

A CARTA

"Em branco?, espantou-se.

Sim, ele disse sem poder muito mais, porque gostava de estar calado e também achava que a palavra escrita levava os olhos dela pra distante dele.

Não, ela disse cortando a conversa do olhar dele com o chão. Ele, que não soube, ou fez que, perguntou:

O quê?

Sua palavra o leva pra onde você não se esconde de mim."

(trecho do conto A Carta, em Entre Paredes e Ondas)

sábado, 27 de março de 2010

IMPRESSO

"De torneira mal fechada vazam os dias. Na mesma página os caracteres confusos. Antes e depois sempre no mesmo lugar, tempo misturados. Cada estalido evoca a lembrança de outro, a promessa do próximo se antecipa, sobrepõe. Fio delgado, a existência escoa pelo mesmo ralo. Viver é saber abandonar-se aos poucos, como quem vai se deixando em tudo, em cada coisa: impressões."

(trecho do conto Impresso Homicida para Concurso Literário, no inédito Entre Paredes e Ondas)

sexta-feira, 26 de março de 2010

sem tempo

Sem tempo de alguma escrita que não seja a repetição incansável de rever os erros e errá-los de outra forma. Sim, estou fechando Entre Paredes e Ondas - prazo pra lá de acabando - e a maior vontade de mostrar pra alguém ler (quem?) - e revisar revisar cortar - por que as frases nunca ficam prontas? (desconfio que as minhas vírgulas se movem enquanto eu durmo - recoloco a todo instante as frases em seus indevidos lugares.

Sem tempo nem de ler as microcrônicascretinas de cumpadre Alaor - tomara que vire livro pra eu poder deixar à cabeceira, ou ler de manha no meio do café (dizem que é assim que ele escreve, pela manhã, por mais que os relógios mintam). E quem não conhece, vale visitar o blog do sujeito - ironia fina. (tem atalho aí do lado).

os olhos vesgos e ardendo - maldito monitor 20 polegadas, disseram que você seria meu amigo; a bunda quadrada. E corta, cola, aplica efeito, sobrepõe, brushes e backgroundes, todo meu inglês de photoshop.

sem tempo de escrever o que a cabeça pensa, sem pensar o que a mão escreve e trocar trocadilhos por qualquer coisa e muito sem saco de escolher tags para catalogar arquivos mortos

(preciso chutar umas lixeiras)

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Entre paredes e ondas

"Horizonte é onde o fio do tempo, estendido, pára. Longo, calmo. Ou paira. O homem não tem certeza. Apenas uma letra entre a pá e a terra. Uma semente e o sol é solo. O homem, só, é muito mais deus, bem mais próximo, até secar."

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Ele bebeu um copo apenas,
os outros foram mergulhando
nele como os rios correm
para o mar. Esqueceu assim
os problemas, esqueceu também
que não tem sono e do teto
que lhe aguarda calmo.
Deixou troco ao garçom
e urina fora do vaso,
cambaleou pelas ruas
segurando as casas que
giravam em volta de si.
O mundo entornou.
Entornou o caldo,
o caldo o afogou.
As mágoas, as tristezas todas, tolas,
ele bebeu, derramou e
gargalhadas torpes o fizeram
dormir - sono de bêbado.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

vazada a página de mais um dia

Difícil saber onde pisa, saber estar onde pisa. O homem sente esta dor. Chega ao outro lado e não há diferença. Ele próprio não responde que lugar aquele. Quer colocar palavras em todo canto, simular naufrágios ou paredes onde encerrar o que não sabe ser. Nada faz sentido. Tudo é sentido. As palavras cabem e acabam. Mal acabadas, desmoronam. Pensa em comer, letra a letra, todos os vocábulos. Não existe, no entanto, quem os diga. Uma pequena esfera sem paredes para ricochetear: ele.

(em Entre Paredes e Ondas)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

despertamento

- Aquele que amanhece é o que será, tem muitas horas pela frente, todo um dia a se cumprir e virá e verá e virão, outro e outros, e outros, e.
Assim pregou a palavra anterior à palavra, ensinando.

"Nada é por acaso, nada é
dom, tudo apenas despertamento..."

(do conto Despertamento, em Entre Paredes e Ondas)

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

uma beira de praia
um pé de montanha
paisagem qualquer
mar que desenrola
vento que alisa rosto
um balanço de verde
céu por teto infinito
por chão um silêncio
cheio do sentir junto
braços nossos enlaçados
suspiro reponde outro
a paisagem estando
estando nós na paisagem
que está quase pretexto
para estarmos apenas
estar como quem está
querer o querer assim
e o silêncio cheio
dos minutos leves
do querer sem fim

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

caminhando sem cantar, seguindo sem canção

Meus pés vagueiam por aí sem sabedoria alguma, frescos, vestidos da sandália de borracha de palma bran-ca onde, encardidos, se desenham meus dedos. Respirando as horas soltas do fim de semana, despidos do abafado ritmo de sapatos e meias, sem os passos apressados, o vai-e-vem, o sobe-e-desce de degraus, os meus pés passeiam distantes de qualquer pensamento. Caminham como quem caminha, mas não feito Caminha — escrevendo retratos daquilo que vê; anunciando tal qual inseto parasita a toda sua raça, as novas riquezas, o sangue novo para sorver, as novas terras para alimentar a praga, o campo aberto para alargar seus vícios. Não. Eles andam sem reparar belezas ou tentar julgamentos; sem buscar Eldorado, sem sonhar Atlântida. Pisam, passam. Não pensam em nada. Pisam asfalto, pedra, areia, uma formiga e outra. E a folha solta de um jornal qualquer que pára, ao acaso, sob o meu peso trazendo, talvez, uma boa notícia, um novo conhecimento que os pés não lêem, pisam. Pisam com o desinteresse do jovem por aquilo que o tempo já amareleceu.


São estes pés novos, deste tempo novo, que saltam o corpo bêbado na calçada. Aliás, não somente os meus pés como também eu e todas as outras pessoas que esperam, plantadas sobre seus respectivos pés, a condução no ponto-de-ônibus em frente. Todos parecem ver aquela imagem entorpecida, inerte, suja, deitada no preto e branco das pedras da calçada, com o mesmo olhar cansado e desatento que passamos pelas notícias já banais de tão repetidas, mesmo em se tratando da desgraça humana.

Por que alguém haveria de se ocupar daquele homem se, afinal, ele dorme o profundo sono de bêbado e sua tempestade só virá quando acordar de ressaca? Por que não deixá-lo tranqüilo como está, respirando a manhã que vasa calma, sem sol nem chuva, branca como as pedras, como a palma da sandália, ou as paredes frias do meu quarto onde me refugio para fazer crônicas que não mudarão nada. Branca como a tela do computador e a página que eu enfeito, ou sujo, com letras negras; negras como a marca dos meus dedos na palma branca da sandália. Nódoas negras como as pedras que fazem a calçada, como a sombra que trazemos todos; negras como os olhos da noite que se anuncia com a ameaça de chuva em suas nuvens cinzas. Cinzas como o pó que, invariavelmente, nos tornamos.

*do livreto "Cronicas de Outono e outras folhas".

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

toda facilidade é um desacato
uma atrofia na musculatura do aprendizado

todo remédio é uma doença cicatrizando
a ferida aberta dos percalços

nenhuma linguagem esclarece
o que há de estar incrustado

nenhum saber é entregue
a quem não possa enterrá-lo

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

CADA UM em seu canto, CADA QUAL a seu modo.

Uma procissão miúda, menor impossível, cruza o deserto. Um tocador marca o ritmo surdo no tambor, dois outros trazem uma pequena arca. O tocador fala:

– A história é pouca e tola, mas todos a merecem conhecer, e que a tomem como exemplo a não seguir, porque assim foi o acontecido: numa terra distante, longe de toda terra onde havia gente, era lá, onde nada conseguia ser, era lá a história dos dois idiotas. Eles eram o pouco que existia. Trabalho era ir resistindo, como quem murcha, porque o tempo era uma espera de fim. Diversão... bem, como sendo os únicos, gostavam de competir, disputar coisas como: quem era o mais alto, quem agüentava mais tempo sem respirar, quem era o mais rápido, quem era o mais forte, quem cuspia mais longe... mas nunca acabava lá muito bem. E era cada um em seu canto, cada qual a seu modo. Esperando... Ah, um tinha chapéu que outro não tinha. Outro tinha sapato que um não tinha. Mas isso não mudava muita coisa. Tudo sempre terminava em confusão.

Uma mosca entra zunindo e provocando irritação dos idiotas até que, para matá-la, um bate no outro que bate no um e começa a briga.

– E assim: cada um em seu canto, cada qual a seu modo, porque um era um e outro era outro. E se detestavam.

Os idiotas encaram-se, voltam-se as costas e contam os passos como em um duelo. O deserto é todo essa tensão. Alcançam a distância necessária. Estampido.

– A história é pouca e tola, mas assim foi o acontecido: certo dia, aquele que era um e gostava de andar porque tinha sapatos, andou tanto e tanto, por tão longo tempo, que deu por encontrar uma caverna. Numa fresta de pedras viu água brotando. Saiu de lá quando o sol já caía, tardinha feita, desfazendo... e se foi feliz com seu achado. Aquele que era outro, no dia de sua vez, estava como não sendo: sentado... quase deitado... chapéu no rosto... preguiça só, quando seu achado o achou.

Um pássaro pousa-lhe na cabeça e sobe vôo com seu chapéu, ele, sem entender, tenta recuperar o que é seu; por fim, depois de seguir o chapéu e encontrar o pássaro, este lhe deixa um punhado de sementes.

– Depois do sucedido, o pássaro ergueu vôo pra de onde viera, lá das terras que eram. Mas, ficou acertado entre eles, de tempo em tempo, sempre trazer o de asas, no bico, sementes para aquele ali, o do chapéu. Assim, cada um em seu canto, cada qual com seu segredo, os dois idiotas foram vivendo, se achando um mais importante que o outro. Enquanto a terra secava e o mundo, lá deles, morria, era um comendo semente, outro bebendo água. E a coisa que não mudava.

Os idiotas, um tentando ser mais do que o outro, repetem-se em suas disputas e sempre termina em confusão.

– Eles eram o pouco que existia e era assim que ia sendo: um andando mais que o sapato agüentasse, porque tinha água pra matar a sede; outro descansando mais que o corpo devia, porque comida lhe chegava no bico. Enquanto a terra, lá deles, morria, trabalho era cada qual defender seu segredo e desconfiar do vizinho. Mas, como quem fácil tem, fácil descuida e quem muito exagera acaba entornando, foi assim: um seguindo o rastro do outro, outro seguindo o rastro do um, até que segredo que era não fosse mais. Sabendo o que sabiam, sem saberem que o outro sabia, voltaram cada um pra seu canto e pensaram, pensaram, pensaram... até que tiveram uma idéia... não, não tiveram... cada qual a seu modo, pensou, pensou... até que tiveram outra idéia... mas, não era boa o bastante... cada um em seu canto ficou até que... sim! Tiveram um plano! Idiota, no entanto.

Decidem acabar com o bem alheio. O idiota de chapéu prepara uma bomba e segue para a caverna onde brota a água, o outro segue em busca do pássaro. O primeiro idiota põe a bomba e se prepara para explodir...

– Enquanto isso, um outro idiota, não muito longe dali...

O idiota de sapatos pega o pássaro pelo pescoço. A ação ocorre simultânea: a caverna explode, o pássaro morre.

– E quando cada um voltou pro canto que era seu, cada qual, a seu modo, se espantou. Foi grito, foi choro, tristeza e revolta. Solução para os idiotas era uma só. E trataram de esconder, bem escondido, o bem que lhes ainda restava.

Eles escondem as sementes e a água no mesmo pouco de terra, na mesma pequena arca.

– Os idiotas, assim, decidiram pelo desafio, porque um era um e outro era outro; e se detestavam.

Encaram-se, voltam-se as costas e contam os passos. O deserto é todo essa tensão. Estampido. Começa o duelo idiota até que se matem.

– Sob o sol, naquela terra que não era, os dois idiotas. Sob a terra, semente e água. Se, ali, naquele pequeno chão, a vida começou a ser, ou não... isso é história pra além da história. O importante já foi contado aqui. A história é tola, mas assim foi o acontecido.

A procissão segue, miúda, cruzando o deserto...

 
*Prêmio de melhor texto no V Festival de Esquetes Elbe de Holanda, RJ.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

sutura

Ser capaz de ligar a frase à pessoa. Nunca a pessoa à frase. Ou o contrário. Ou. Existem sempre outras possibilidades, ou

Ligar a crase à pessoa. Crasear; meio que falar pra dentro, ou fazer força para não gaguejar. Um arroto preso. Criança ignora essas regras, é cheia de inumanidade.

Coser os lábios. Não dizer o que não deve. Não dever o que diz a ninguém. Abre aspas: citar alguém que citou alguém.

Excitar. Excitação. Fagocitose. Manter a perspicácia membranosa, a qualidade langanhenta. Afastar a falsa idéia de solidez. Tomar cuidado com as pedras nos rins.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

entre versos emersos

feitoALMASperfumes
PASSAMdeixandoRASTRO
sombras&lumes
BETUMEeALABASTRO

vozSUSSURROtantas
CALORmundo
vastoVAZIOsóisCHUVASterrasANIMAISplantas
DEtudoPOUCO(  )impressões(     )FUNDO

redençõesACHO
SUSPIROSdiário
poemaDESPACHO
PEÇaVAZIAarmário

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A carta de(s)amor

"puro impulso/ desregrado fervor/ que ainda é quente o sangue/ desta veia cortada há pouco"

mais um pouco dos antigos livretos:



terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O cronista de rosto pelado

corrompido por um (único) comentário, feito velho olhando pra trás, resgato mais uma croniquinha de outros dos livretos artesanais (ou caseiros) de juventude.


JÁ PENSOU SE...

Comia certa tarde numa “fast food” quando me veio uma pergunta curiosa à cabeça. Uma daquelas coisas de criança, com caráter bem imaginativo que começam com: “já pensou se...”. Pois é, foi assim: não sei porque, nem de onde. Talvez obra do ócio. A pergunta, um grito pela cultura do inútil, desencadeando uma série de imaginações estúpidas. A pergunta:


"Já pensou se gergelim andasse?"

Imaginei uma mulher grávida, daquelas que enjoam até de olhar para parede branca, com o desejo de comer um dos super-hambúrgeres de uma destas lanchonetes. Quando recebe o sanduíche vê fervilhando aquela centena de gergelins eufóricos tentando fugir. A tragédia estaria feita.

Quem sabe a confusão que seria, num dia de domingo, lanchonete lotada e os clientes discutindo:

— Ô, rapaz, devolve esses gergelins que eles são meus!

— O que eu posso fazer? Foram eles que pularam na minha bandeja.

— Você vai ter que pagar o meu lanche.

— Nada disso! Eu não vou pagar o seu sanduíche só porque o senhor não soube ensinar boas maneiras aos seus gergelins.

Imaginem as mães preocupadas com as crianças que correm atrás dos gergelins fugidios enfiando-se por baixo das mesas. Ou aquele casal cochichando:

— Não olhe agora, meu bem, mas eu acho que os gergelins do cliente da mesa ao lado estão se escondendo no nosso pacote de batatas.

Ou ainda:

— Meu amor, gergelim sabe nadar?

— Que eu saiba, não.

— Então, acho que um deles acabou de se suicidar no seu copo de refrigerante.

Até que seria engraçado ver os manifestantes do GreenPeace invadindo as redes de fastfood, todos nus e de traseiros depilados, simbolizando pães sem gergelins. Uma reivindicação pela criação da lei de proteção ambiental dos gergelins no período de reprodução da espécie.

Pior. E se tentassem uma revolução?

— Atenção! Atenção! Um grupo extremista de gergelins terroristas acaba de tomar clientes e funcionários de uma importante lanchonete no centro da cidade como reféns. Eles exigem a criação de um estado independente para exercerem sua livre religião. A qualquer momento voltamos com mais e más notícias.

Um dia, talvez, ouviríamos os gritos do jornaleiro anunciando:

— Extra! Extra! Pão de Açúcar recebe gergelins refugiados políticos do pão de hambúrguer!

Sendo reconhecidos como uma nova espécie animal, poderiam se tornar símbolo do país e, quem sabe em breve, veriamos no lugar da onça pintada a figura de um gergelim estampada nas notas de cinqüenta.

Bem, é melhor encerrar esta crônica antes que comece a imaginar moedas cunhadas com o rosto de algum Adolph-Gergelim-Hitler, o revolucionário que comandou a campanha dos gergelins contra a raça humana.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Domingo morto

No dia claro, de uma brancura sem sol, abertos os meus olhos ardem diante do horizonte vasto. Manhã de domingo, irrompe da boca um bocejo. O café ainda não veio, reclama o estômago. Engulo para ele o cansaço da semana. Sento-me ao pé da árvore de pequenas sementes que colorem o chão — e tive preguiça de pesquisar o nome — para aproveitar a sombra e ouvir a natureza falar das coisas passadas ou dos planos de amanhã. Mas ela não fala e, se acaso o fizesse, não seria mais do que devaneio de poeta.

A natureza simplesmente existe — pelo menos nos fins de semana quando temos tempo de olhá-la e nos apercebermos dela com um certo ressentimento de sabê-la ali: companheira ignorada. Distraídos em nosso suor cotidiano, nós, assassinos diários de sua beleza, sequer prestamos um mimo como se fazem com os moribundos queridos. Mas tudo é domingo, nada é dito ou pensado. Na televisão, nos botequins, nas padarias, no morno âmbito familiar, o burburinho é apenas uma forma do som existir: tolo, pacato, sem propósito. É o som se fazendo som, cansado como o resto do domingo e da minha crônica, que é um resto de mim se arrastando.

Eu, cronista de inércias, vejo apenas o movimento nas folhas das árvores, a areia me pegar na perna, o vento correndo paralelo ao horizonte, encrespando a água morta, fingindo-lhe movimento como os vermes fingem existir vida na carne putrefata. Mas tudo não passa de podridão.

Domingo: é o movimento que se movimenta no movimento das coisas, não elas. É o cronista parafraseando o poeta. É a vida correndo disfarçada, escondida, submersa como os peixes que sobrevivem na escuridão dolorosa das águas da Lagoa de Araruama.

*croniquinha de juventude, presente no livreto artesanal "Crônicas de Outono e outras folhas" que confeccionei para distribuição em evento literário aqui no feudo de Araruama pelos idos de 2006/2007, por aí. Confira a imagem da capa e contracapa:
 

sábado, 2 de janeiro de 2010

Na aurora mais secreta

O porão é tomado por um silêncio tenso de um campo devastado; o ar é pesado e medido, em se muito respirar, acaba. Sapato posto fora, os exilados existem como ferida no calcanhar da memória; é onde a nostalgia se empedra. Os fantasmas morrem no porão. No entanto, à sombra da sociedade máquina, com um olhar de amorosa espreita, o artista trabalha seus sonhos e inquietações. A semente brota na semente, a luz é criada no porão.


Cena
(um cálice de luz bruxuleia nas trevas do porão; o artista veste-se do personagem, sua criação, um boneco feito de sobras).

     O medo do medo faz a pedra. Quem descortina a luz é relegado ao porão onde a nostalgia se empedra e os sentidos se esfumam... Lágrima seca, sorriso apaga, beleza embrutece... E o homem?... Sou filho da inquietude, fecundado em fagulhas, entre a poeira e a sombra... E o homem atormentado pelo espectro de não fazer nada de si mesmo no mundo, marcha... Marcha, pelo apenas mundo... Progresso... Pedra... Sou o corpo da alma inquieta, ajuntamento de lembranças. Pendurado no calcanhar da memória, sou a oração do artista ante a surdez dos homens. Então é caco celebrando caco, mão acendendo outra, e o que era algema vira braço do abraço e estende outro... Primeiro alma, depois corpo... Logo, tudo é capaz de nascer... Depois grito... Que só ganha corpo a voz que antes se anima em silêncio. O medo do medo faz a pedra, o musgo, a beleza embrutecida. O homem na presença da noite... Apenas mundo, máquina, progresso... De quê?... De quem?... Acorda. Ouça: é preciso estar acordado, sonhar acordado para que o sonho se engrandeça. Alimentar a luz; cuidá-la para que não adormeça. Luz... Quando a vi pensei em nossa igual liberdade, a dos fracos, e a amei desde o primeiro livro de criança... O amor mais difícil... Repleto de precipícios, e a promessa de um mundo se paciência tivesse de amá-la... Sou corpo da alma inquieta, do porão vejo mundos que me dói ver. Sofro... “Adivinhando luz falou-me logo chegaremos, meu triste encantado” . Quando? “Enquanto nos amarmos durará a travessia” (1). Na floração de um futuro após a ressurreição será alma reinventando corpo, mão reinventando fogo. Os olhos, de tanto amor, despertarão luz dos favos mais ocultos. Beberemos luz e as “pedras se iluminarão milagrosamente por dentro, porque só termina para todo sempre o que foi artificialmente construído” . E, no espelho, o rosto do espelho brilhará. E “um dia as pedras gritarão" (2). "Porque o universo não se subjuga a um Sistema, a uma hierarquia muda” (3). E o porão voará do porão para dar luz ao mundo...

fim

(1) - Nélida Piñon em "Luz".
(2) - Mário Quintana em "O segundo Mandamento".
(3) - Carlos Nejar em "Memórias do porão".

*Cena vencedora do prêmio de Criatividade na V Mostra Minimalista de Petrópolis.

Algumas fotos e outros informes no site do grupo: http://grupoteatrama.blogspot.com/2009/08/na-aurora-mais-secreta.html