Páginas

sábado, 2 de janeiro de 2010

Na aurora mais secreta

O porão é tomado por um silêncio tenso de um campo devastado; o ar é pesado e medido, em se muito respirar, acaba. Sapato posto fora, os exilados existem como ferida no calcanhar da memória; é onde a nostalgia se empedra. Os fantasmas morrem no porão. No entanto, à sombra da sociedade máquina, com um olhar de amorosa espreita, o artista trabalha seus sonhos e inquietações. A semente brota na semente, a luz é criada no porão.


Cena
(um cálice de luz bruxuleia nas trevas do porão; o artista veste-se do personagem, sua criação, um boneco feito de sobras).

     O medo do medo faz a pedra. Quem descortina a luz é relegado ao porão onde a nostalgia se empedra e os sentidos se esfumam... Lágrima seca, sorriso apaga, beleza embrutece... E o homem?... Sou filho da inquietude, fecundado em fagulhas, entre a poeira e a sombra... E o homem atormentado pelo espectro de não fazer nada de si mesmo no mundo, marcha... Marcha, pelo apenas mundo... Progresso... Pedra... Sou o corpo da alma inquieta, ajuntamento de lembranças. Pendurado no calcanhar da memória, sou a oração do artista ante a surdez dos homens. Então é caco celebrando caco, mão acendendo outra, e o que era algema vira braço do abraço e estende outro... Primeiro alma, depois corpo... Logo, tudo é capaz de nascer... Depois grito... Que só ganha corpo a voz que antes se anima em silêncio. O medo do medo faz a pedra, o musgo, a beleza embrutecida. O homem na presença da noite... Apenas mundo, máquina, progresso... De quê?... De quem?... Acorda. Ouça: é preciso estar acordado, sonhar acordado para que o sonho se engrandeça. Alimentar a luz; cuidá-la para que não adormeça. Luz... Quando a vi pensei em nossa igual liberdade, a dos fracos, e a amei desde o primeiro livro de criança... O amor mais difícil... Repleto de precipícios, e a promessa de um mundo se paciência tivesse de amá-la... Sou corpo da alma inquieta, do porão vejo mundos que me dói ver. Sofro... “Adivinhando luz falou-me logo chegaremos, meu triste encantado” . Quando? “Enquanto nos amarmos durará a travessia” (1). Na floração de um futuro após a ressurreição será alma reinventando corpo, mão reinventando fogo. Os olhos, de tanto amor, despertarão luz dos favos mais ocultos. Beberemos luz e as “pedras se iluminarão milagrosamente por dentro, porque só termina para todo sempre o que foi artificialmente construído” . E, no espelho, o rosto do espelho brilhará. E “um dia as pedras gritarão" (2). "Porque o universo não se subjuga a um Sistema, a uma hierarquia muda” (3). E o porão voará do porão para dar luz ao mundo...

fim

(1) - Nélida Piñon em "Luz".
(2) - Mário Quintana em "O segundo Mandamento".
(3) - Carlos Nejar em "Memórias do porão".

*Cena vencedora do prêmio de Criatividade na V Mostra Minimalista de Petrópolis.

Algumas fotos e outros informes no site do grupo: http://grupoteatrama.blogspot.com/2009/08/na-aurora-mais-secreta.html

Um comentário: