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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

toda facilidade é um desacato
uma atrofia na musculatura do aprendizado

todo remédio é uma doença cicatrizando
a ferida aberta dos percalços

nenhuma linguagem esclarece
o que há de estar incrustado

nenhum saber é entregue
a quem não possa enterrá-lo

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

CADA UM em seu canto, CADA QUAL a seu modo.

Uma procissão miúda, menor impossível, cruza o deserto. Um tocador marca o ritmo surdo no tambor, dois outros trazem uma pequena arca. O tocador fala:

– A história é pouca e tola, mas todos a merecem conhecer, e que a tomem como exemplo a não seguir, porque assim foi o acontecido: numa terra distante, longe de toda terra onde havia gente, era lá, onde nada conseguia ser, era lá a história dos dois idiotas. Eles eram o pouco que existia. Trabalho era ir resistindo, como quem murcha, porque o tempo era uma espera de fim. Diversão... bem, como sendo os únicos, gostavam de competir, disputar coisas como: quem era o mais alto, quem agüentava mais tempo sem respirar, quem era o mais rápido, quem era o mais forte, quem cuspia mais longe... mas nunca acabava lá muito bem. E era cada um em seu canto, cada qual a seu modo. Esperando... Ah, um tinha chapéu que outro não tinha. Outro tinha sapato que um não tinha. Mas isso não mudava muita coisa. Tudo sempre terminava em confusão.

Uma mosca entra zunindo e provocando irritação dos idiotas até que, para matá-la, um bate no outro que bate no um e começa a briga.

– E assim: cada um em seu canto, cada qual a seu modo, porque um era um e outro era outro. E se detestavam.

Os idiotas encaram-se, voltam-se as costas e contam os passos como em um duelo. O deserto é todo essa tensão. Alcançam a distância necessária. Estampido.

– A história é pouca e tola, mas assim foi o acontecido: certo dia, aquele que era um e gostava de andar porque tinha sapatos, andou tanto e tanto, por tão longo tempo, que deu por encontrar uma caverna. Numa fresta de pedras viu água brotando. Saiu de lá quando o sol já caía, tardinha feita, desfazendo... e se foi feliz com seu achado. Aquele que era outro, no dia de sua vez, estava como não sendo: sentado... quase deitado... chapéu no rosto... preguiça só, quando seu achado o achou.

Um pássaro pousa-lhe na cabeça e sobe vôo com seu chapéu, ele, sem entender, tenta recuperar o que é seu; por fim, depois de seguir o chapéu e encontrar o pássaro, este lhe deixa um punhado de sementes.

– Depois do sucedido, o pássaro ergueu vôo pra de onde viera, lá das terras que eram. Mas, ficou acertado entre eles, de tempo em tempo, sempre trazer o de asas, no bico, sementes para aquele ali, o do chapéu. Assim, cada um em seu canto, cada qual com seu segredo, os dois idiotas foram vivendo, se achando um mais importante que o outro. Enquanto a terra secava e o mundo, lá deles, morria, era um comendo semente, outro bebendo água. E a coisa que não mudava.

Os idiotas, um tentando ser mais do que o outro, repetem-se em suas disputas e sempre termina em confusão.

– Eles eram o pouco que existia e era assim que ia sendo: um andando mais que o sapato agüentasse, porque tinha água pra matar a sede; outro descansando mais que o corpo devia, porque comida lhe chegava no bico. Enquanto a terra, lá deles, morria, trabalho era cada qual defender seu segredo e desconfiar do vizinho. Mas, como quem fácil tem, fácil descuida e quem muito exagera acaba entornando, foi assim: um seguindo o rastro do outro, outro seguindo o rastro do um, até que segredo que era não fosse mais. Sabendo o que sabiam, sem saberem que o outro sabia, voltaram cada um pra seu canto e pensaram, pensaram, pensaram... até que tiveram uma idéia... não, não tiveram... cada qual a seu modo, pensou, pensou... até que tiveram outra idéia... mas, não era boa o bastante... cada um em seu canto ficou até que... sim! Tiveram um plano! Idiota, no entanto.

Decidem acabar com o bem alheio. O idiota de chapéu prepara uma bomba e segue para a caverna onde brota a água, o outro segue em busca do pássaro. O primeiro idiota põe a bomba e se prepara para explodir...

– Enquanto isso, um outro idiota, não muito longe dali...

O idiota de sapatos pega o pássaro pelo pescoço. A ação ocorre simultânea: a caverna explode, o pássaro morre.

– E quando cada um voltou pro canto que era seu, cada qual, a seu modo, se espantou. Foi grito, foi choro, tristeza e revolta. Solução para os idiotas era uma só. E trataram de esconder, bem escondido, o bem que lhes ainda restava.

Eles escondem as sementes e a água no mesmo pouco de terra, na mesma pequena arca.

– Os idiotas, assim, decidiram pelo desafio, porque um era um e outro era outro; e se detestavam.

Encaram-se, voltam-se as costas e contam os passos. O deserto é todo essa tensão. Estampido. Começa o duelo idiota até que se matem.

– Sob o sol, naquela terra que não era, os dois idiotas. Sob a terra, semente e água. Se, ali, naquele pequeno chão, a vida começou a ser, ou não... isso é história pra além da história. O importante já foi contado aqui. A história é tola, mas assim foi o acontecido.

A procissão segue, miúda, cruzando o deserto...

 
*Prêmio de melhor texto no V Festival de Esquetes Elbe de Holanda, RJ.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

sutura

Ser capaz de ligar a frase à pessoa. Nunca a pessoa à frase. Ou o contrário. Ou. Existem sempre outras possibilidades, ou

Ligar a crase à pessoa. Crasear; meio que falar pra dentro, ou fazer força para não gaguejar. Um arroto preso. Criança ignora essas regras, é cheia de inumanidade.

Coser os lábios. Não dizer o que não deve. Não dever o que diz a ninguém. Abre aspas: citar alguém que citou alguém.

Excitar. Excitação. Fagocitose. Manter a perspicácia membranosa, a qualidade langanhenta. Afastar a falsa idéia de solidez. Tomar cuidado com as pedras nos rins.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

entre versos emersos

feitoALMASperfumes
PASSAMdeixandoRASTRO
sombras&lumes
BETUMEeALABASTRO

vozSUSSURROtantas
CALORmundo
vastoVAZIOsóisCHUVASterrasANIMAISplantas
DEtudoPOUCO(  )impressões(     )FUNDO

redençõesACHO
SUSPIROSdiário
poemaDESPACHO
PEÇaVAZIAarmário

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A carta de(s)amor

"puro impulso/ desregrado fervor/ que ainda é quente o sangue/ desta veia cortada há pouco"

mais um pouco dos antigos livretos:



terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O cronista de rosto pelado

corrompido por um (único) comentário, feito velho olhando pra trás, resgato mais uma croniquinha de outros dos livretos artesanais (ou caseiros) de juventude.


JÁ PENSOU SE...

Comia certa tarde numa “fast food” quando me veio uma pergunta curiosa à cabeça. Uma daquelas coisas de criança, com caráter bem imaginativo que começam com: “já pensou se...”. Pois é, foi assim: não sei porque, nem de onde. Talvez obra do ócio. A pergunta, um grito pela cultura do inútil, desencadeando uma série de imaginações estúpidas. A pergunta:


"Já pensou se gergelim andasse?"

Imaginei uma mulher grávida, daquelas que enjoam até de olhar para parede branca, com o desejo de comer um dos super-hambúrgeres de uma destas lanchonetes. Quando recebe o sanduíche vê fervilhando aquela centena de gergelins eufóricos tentando fugir. A tragédia estaria feita.

Quem sabe a confusão que seria, num dia de domingo, lanchonete lotada e os clientes discutindo:

— Ô, rapaz, devolve esses gergelins que eles são meus!

— O que eu posso fazer? Foram eles que pularam na minha bandeja.

— Você vai ter que pagar o meu lanche.

— Nada disso! Eu não vou pagar o seu sanduíche só porque o senhor não soube ensinar boas maneiras aos seus gergelins.

Imaginem as mães preocupadas com as crianças que correm atrás dos gergelins fugidios enfiando-se por baixo das mesas. Ou aquele casal cochichando:

— Não olhe agora, meu bem, mas eu acho que os gergelins do cliente da mesa ao lado estão se escondendo no nosso pacote de batatas.

Ou ainda:

— Meu amor, gergelim sabe nadar?

— Que eu saiba, não.

— Então, acho que um deles acabou de se suicidar no seu copo de refrigerante.

Até que seria engraçado ver os manifestantes do GreenPeace invadindo as redes de fastfood, todos nus e de traseiros depilados, simbolizando pães sem gergelins. Uma reivindicação pela criação da lei de proteção ambiental dos gergelins no período de reprodução da espécie.

Pior. E se tentassem uma revolução?

— Atenção! Atenção! Um grupo extremista de gergelins terroristas acaba de tomar clientes e funcionários de uma importante lanchonete no centro da cidade como reféns. Eles exigem a criação de um estado independente para exercerem sua livre religião. A qualquer momento voltamos com mais e más notícias.

Um dia, talvez, ouviríamos os gritos do jornaleiro anunciando:

— Extra! Extra! Pão de Açúcar recebe gergelins refugiados políticos do pão de hambúrguer!

Sendo reconhecidos como uma nova espécie animal, poderiam se tornar símbolo do país e, quem sabe em breve, veriamos no lugar da onça pintada a figura de um gergelim estampada nas notas de cinqüenta.

Bem, é melhor encerrar esta crônica antes que comece a imaginar moedas cunhadas com o rosto de algum Adolph-Gergelim-Hitler, o revolucionário que comandou a campanha dos gergelins contra a raça humana.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Domingo morto

No dia claro, de uma brancura sem sol, abertos os meus olhos ardem diante do horizonte vasto. Manhã de domingo, irrompe da boca um bocejo. O café ainda não veio, reclama o estômago. Engulo para ele o cansaço da semana. Sento-me ao pé da árvore de pequenas sementes que colorem o chão — e tive preguiça de pesquisar o nome — para aproveitar a sombra e ouvir a natureza falar das coisas passadas ou dos planos de amanhã. Mas ela não fala e, se acaso o fizesse, não seria mais do que devaneio de poeta.

A natureza simplesmente existe — pelo menos nos fins de semana quando temos tempo de olhá-la e nos apercebermos dela com um certo ressentimento de sabê-la ali: companheira ignorada. Distraídos em nosso suor cotidiano, nós, assassinos diários de sua beleza, sequer prestamos um mimo como se fazem com os moribundos queridos. Mas tudo é domingo, nada é dito ou pensado. Na televisão, nos botequins, nas padarias, no morno âmbito familiar, o burburinho é apenas uma forma do som existir: tolo, pacato, sem propósito. É o som se fazendo som, cansado como o resto do domingo e da minha crônica, que é um resto de mim se arrastando.

Eu, cronista de inércias, vejo apenas o movimento nas folhas das árvores, a areia me pegar na perna, o vento correndo paralelo ao horizonte, encrespando a água morta, fingindo-lhe movimento como os vermes fingem existir vida na carne putrefata. Mas tudo não passa de podridão.

Domingo: é o movimento que se movimenta no movimento das coisas, não elas. É o cronista parafraseando o poeta. É a vida correndo disfarçada, escondida, submersa como os peixes que sobrevivem na escuridão dolorosa das águas da Lagoa de Araruama.

*croniquinha de juventude, presente no livreto artesanal "Crônicas de Outono e outras folhas" que confeccionei para distribuição em evento literário aqui no feudo de Araruama pelos idos de 2006/2007, por aí. Confira a imagem da capa e contracapa:
 

sábado, 2 de janeiro de 2010

Na aurora mais secreta

O porão é tomado por um silêncio tenso de um campo devastado; o ar é pesado e medido, em se muito respirar, acaba. Sapato posto fora, os exilados existem como ferida no calcanhar da memória; é onde a nostalgia se empedra. Os fantasmas morrem no porão. No entanto, à sombra da sociedade máquina, com um olhar de amorosa espreita, o artista trabalha seus sonhos e inquietações. A semente brota na semente, a luz é criada no porão.


Cena
(um cálice de luz bruxuleia nas trevas do porão; o artista veste-se do personagem, sua criação, um boneco feito de sobras).

     O medo do medo faz a pedra. Quem descortina a luz é relegado ao porão onde a nostalgia se empedra e os sentidos se esfumam... Lágrima seca, sorriso apaga, beleza embrutece... E o homem?... Sou filho da inquietude, fecundado em fagulhas, entre a poeira e a sombra... E o homem atormentado pelo espectro de não fazer nada de si mesmo no mundo, marcha... Marcha, pelo apenas mundo... Progresso... Pedra... Sou o corpo da alma inquieta, ajuntamento de lembranças. Pendurado no calcanhar da memória, sou a oração do artista ante a surdez dos homens. Então é caco celebrando caco, mão acendendo outra, e o que era algema vira braço do abraço e estende outro... Primeiro alma, depois corpo... Logo, tudo é capaz de nascer... Depois grito... Que só ganha corpo a voz que antes se anima em silêncio. O medo do medo faz a pedra, o musgo, a beleza embrutecida. O homem na presença da noite... Apenas mundo, máquina, progresso... De quê?... De quem?... Acorda. Ouça: é preciso estar acordado, sonhar acordado para que o sonho se engrandeça. Alimentar a luz; cuidá-la para que não adormeça. Luz... Quando a vi pensei em nossa igual liberdade, a dos fracos, e a amei desde o primeiro livro de criança... O amor mais difícil... Repleto de precipícios, e a promessa de um mundo se paciência tivesse de amá-la... Sou corpo da alma inquieta, do porão vejo mundos que me dói ver. Sofro... “Adivinhando luz falou-me logo chegaremos, meu triste encantado” . Quando? “Enquanto nos amarmos durará a travessia” (1). Na floração de um futuro após a ressurreição será alma reinventando corpo, mão reinventando fogo. Os olhos, de tanto amor, despertarão luz dos favos mais ocultos. Beberemos luz e as “pedras se iluminarão milagrosamente por dentro, porque só termina para todo sempre o que foi artificialmente construído” . E, no espelho, o rosto do espelho brilhará. E “um dia as pedras gritarão" (2). "Porque o universo não se subjuga a um Sistema, a uma hierarquia muda” (3). E o porão voará do porão para dar luz ao mundo...

fim

(1) - Nélida Piñon em "Luz".
(2) - Mário Quintana em "O segundo Mandamento".
(3) - Carlos Nejar em "Memórias do porão".

*Cena vencedora do prêmio de Criatividade na V Mostra Minimalista de Petrópolis.

Algumas fotos e outros informes no site do grupo: http://grupoteatrama.blogspot.com/2009/08/na-aurora-mais-secreta.html