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domingo, 19 de dezembro de 2010

Sobre amigos, água no pulmão e zeros à esquerda

Por que é tão difícil fazer amigos e tão fácil distanciar-se deles? Ainda mais difícil é tentar revê-los. Tem sempre uma porção de coisas sendo feitas e outras por fazer, parece que a vida nunca acha tempo para se encontrar conosco. Ou o contrário, mas, vá lá, vamos botar a culpa em outro para não pesar os nossos ombros. Não agora, tão próximo do final do ano, nós assim tão avizinhados das novas promessas, votos e listas de metas para uma vida que pretendemos e, provavelmente, apenas pretenderemos. É um gole imenso de água escapando por entre os dentes. Uma sede alojada no pulmão. Vai jogar água lá, vai? Então, prenda a respiração. A vida faz perder o fôlego, mas não sufoca. Está sufocado? Então, não é nada disso. Também não sei escrever mapas. O jeito, vai ver, é urinar pelo caminho e esquinas. Os cães ensinam, experimente. Sei apenas que estou fazendo mil coisas e ainda vou fazer outras mil. Plantar zeros à direita, porque é preciso garantir o pão de cada dia. Também vou plantar muitos outros zeros à esquerda, porque existem coisas impagáveis que precisam ser feitas a qualquer custo, assim como existem outras que precisam ser desfeitas e, tanto umas quanto outras, não custam nada. Mas, somente os loucos conseguem se dedicar a elas. Há círculos que não retornam ao mesmo ponto. Mais lados do que parece. Há saídas sem túneis. Eu sei, por mais que nos afastemos, existem seres que não podem ser abandonados. Mesmo que nossa fraca memória se esqueça, há aqueles que trazemos conosco. Em tudo aquilo que me faz sentir vivo, em tudo aquilo que faço para além da fome do estômago e da satisfação do umbigo, em todas essas coisas mágicas que nos ultrapassam e dilatam, fazendo o corpo esquecer que é composto de órgãos, em tudo isso que não se pode mensurar, nos zeros plantados à esquerda, eu sinto que existem outros gestos aos meus enraizados. É quando os meus pulmões se enchem de água e eu respiro pelas brânquias.

sábado, 18 de dezembro de 2010

“Irradiar bondade é maravilhoso, porque é tônico, revigorante, vitalizante. Mas apenas ser é ainda mais maravilhoso, porque é interminável e não exige demonstração. Ser é música, que é uma profanação do silêncio no interesse do silêncio, e portanto transcende o bem e o mal. A música é a manifestação da ação sem atividade. É o puro ato de criação nadando em seu próprio seio. A música não estimula nem protege, nem busca nem explica. A música é o som silencioso feito pelo nadador no oceano da consciência. É uma recompensa que só pode ser dada por nós mesmos. É a dádiva do deus que somos, porque deixamos de pensar em Deus. É um augúrio do deus em que todos nos tornaremos no devido tempo, quando tudo que é será além da imaginação.”


Henry Miller, Trópico de Capricórnio.



quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

As agonias estão entre as roupas que visto,
Não pergunto ao ferido como se sente, eu mesmo me torno o ferido,
Minhas dores se voltam lívidas para mim quando me apóio na bengala e observo.

Walt Whitman, Folhas de Relva.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Glutões dominicais

Os glutões dominicais refestelam seus corpos empanturrados procurando os cantos mais frescos da casa. Ensebam móveis e pisos com suas extensas superfícies de pele gordurosa. A boca entreaberta, a respiração ofegante. Tudo é estômago e transpira, seja carne, parede, ou mesmo os sonhos que gelatinosamente se movem dentro de suas cabeças pendidas. Decidiram-se pelas porções mais bem servidas. Pediram para caprichar, assim como foram ensinados a fazer, assim como é preciso que façam para tirarem sempre o melhor proveito e impedirem de serem enganados. Pagaram para comer e comeram porque pagaram – tudo, até o último grão. Nada pode ser deixado para trás. Não podem ser passados para trás. Nenhuma vantagem tirada às suas custas. Precisam sentir que saíram no lucro, que se deram bem. Por isso lambem os beiços, os pratos e fazem embrulhos para os cachorros. Depois balançam morosamente os seus rabos, em intensa sudorese, até a casa. Talvez, alguma coisa presente na consistência semanal dos domingos incite esta espécie de glutonaria familiar. Um estranho prazer que se esparrama e sufoca as calorosas horas da tarde com o peso de seus corpos repletos de pêlos, flatos e quilos e quilos de merda, que serão dissipados ao longo da longa noite de maravilhados gemidos e intensas contrações.