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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

caminhando sem cantar, seguindo sem canção

Meus pés vagueiam por aí sem sabedoria alguma, frescos, vestidos da sandália de borracha de palma bran-ca onde, encardidos, se desenham meus dedos. Respirando as horas soltas do fim de semana, despidos do abafado ritmo de sapatos e meias, sem os passos apressados, o vai-e-vem, o sobe-e-desce de degraus, os meus pés passeiam distantes de qualquer pensamento. Caminham como quem caminha, mas não feito Caminha — escrevendo retratos daquilo que vê; anunciando tal qual inseto parasita a toda sua raça, as novas riquezas, o sangue novo para sorver, as novas terras para alimentar a praga, o campo aberto para alargar seus vícios. Não. Eles andam sem reparar belezas ou tentar julgamentos; sem buscar Eldorado, sem sonhar Atlântida. Pisam, passam. Não pensam em nada. Pisam asfalto, pedra, areia, uma formiga e outra. E a folha solta de um jornal qualquer que pára, ao acaso, sob o meu peso trazendo, talvez, uma boa notícia, um novo conhecimento que os pés não lêem, pisam. Pisam com o desinteresse do jovem por aquilo que o tempo já amareleceu.


São estes pés novos, deste tempo novo, que saltam o corpo bêbado na calçada. Aliás, não somente os meus pés como também eu e todas as outras pessoas que esperam, plantadas sobre seus respectivos pés, a condução no ponto-de-ônibus em frente. Todos parecem ver aquela imagem entorpecida, inerte, suja, deitada no preto e branco das pedras da calçada, com o mesmo olhar cansado e desatento que passamos pelas notícias já banais de tão repetidas, mesmo em se tratando da desgraça humana.

Por que alguém haveria de se ocupar daquele homem se, afinal, ele dorme o profundo sono de bêbado e sua tempestade só virá quando acordar de ressaca? Por que não deixá-lo tranqüilo como está, respirando a manhã que vasa calma, sem sol nem chuva, branca como as pedras, como a palma da sandália, ou as paredes frias do meu quarto onde me refugio para fazer crônicas que não mudarão nada. Branca como a tela do computador e a página que eu enfeito, ou sujo, com letras negras; negras como a marca dos meus dedos na palma branca da sandália. Nódoas negras como as pedras que fazem a calçada, como a sombra que trazemos todos; negras como os olhos da noite que se anuncia com a ameaça de chuva em suas nuvens cinzas. Cinzas como o pó que, invariavelmente, nos tornamos.

*do livreto "Cronicas de Outono e outras folhas".

5 comentários:

  1. Grande Alexandre,

    show de crônica! Meu identificador de talentos 2010, modelo CLPT-Falido, diz que está na hora de você começar a escrever um romance.
    Beijos e muito sucesso.
    alaor

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  2. Sinto-me feliz, orgulhosa...ah!como é bom saber que você escreve as coisas que mais gosto de ler.

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  3. Oi, Alexandre. Obrigada por sua visita la no meu varal. Tô por aqui, tateando sua escrita... beijos!

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  4. Palavras, palavras... são muito úteis para escrever textos assim como esse, e inúteis quando fogem e me deixam sem saber o que dizer após a leitura do mesmo.

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