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segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

CADA UM em seu canto, CADA QUAL a seu modo.

Uma procissão miúda, menor impossível, cruza o deserto. Um tocador marca o ritmo surdo no tambor, dois outros trazem uma pequena arca. O tocador fala:

– A história é pouca e tola, mas todos a merecem conhecer, e que a tomem como exemplo a não seguir, porque assim foi o acontecido: numa terra distante, longe de toda terra onde havia gente, era lá, onde nada conseguia ser, era lá a história dos dois idiotas. Eles eram o pouco que existia. Trabalho era ir resistindo, como quem murcha, porque o tempo era uma espera de fim. Diversão... bem, como sendo os únicos, gostavam de competir, disputar coisas como: quem era o mais alto, quem agüentava mais tempo sem respirar, quem era o mais rápido, quem era o mais forte, quem cuspia mais longe... mas nunca acabava lá muito bem. E era cada um em seu canto, cada qual a seu modo. Esperando... Ah, um tinha chapéu que outro não tinha. Outro tinha sapato que um não tinha. Mas isso não mudava muita coisa. Tudo sempre terminava em confusão.

Uma mosca entra zunindo e provocando irritação dos idiotas até que, para matá-la, um bate no outro que bate no um e começa a briga.

– E assim: cada um em seu canto, cada qual a seu modo, porque um era um e outro era outro. E se detestavam.

Os idiotas encaram-se, voltam-se as costas e contam os passos como em um duelo. O deserto é todo essa tensão. Alcançam a distância necessária. Estampido.

– A história é pouca e tola, mas assim foi o acontecido: certo dia, aquele que era um e gostava de andar porque tinha sapatos, andou tanto e tanto, por tão longo tempo, que deu por encontrar uma caverna. Numa fresta de pedras viu água brotando. Saiu de lá quando o sol já caía, tardinha feita, desfazendo... e se foi feliz com seu achado. Aquele que era outro, no dia de sua vez, estava como não sendo: sentado... quase deitado... chapéu no rosto... preguiça só, quando seu achado o achou.

Um pássaro pousa-lhe na cabeça e sobe vôo com seu chapéu, ele, sem entender, tenta recuperar o que é seu; por fim, depois de seguir o chapéu e encontrar o pássaro, este lhe deixa um punhado de sementes.

– Depois do sucedido, o pássaro ergueu vôo pra de onde viera, lá das terras que eram. Mas, ficou acertado entre eles, de tempo em tempo, sempre trazer o de asas, no bico, sementes para aquele ali, o do chapéu. Assim, cada um em seu canto, cada qual com seu segredo, os dois idiotas foram vivendo, se achando um mais importante que o outro. Enquanto a terra secava e o mundo, lá deles, morria, era um comendo semente, outro bebendo água. E a coisa que não mudava.

Os idiotas, um tentando ser mais do que o outro, repetem-se em suas disputas e sempre termina em confusão.

– Eles eram o pouco que existia e era assim que ia sendo: um andando mais que o sapato agüentasse, porque tinha água pra matar a sede; outro descansando mais que o corpo devia, porque comida lhe chegava no bico. Enquanto a terra, lá deles, morria, trabalho era cada qual defender seu segredo e desconfiar do vizinho. Mas, como quem fácil tem, fácil descuida e quem muito exagera acaba entornando, foi assim: um seguindo o rastro do outro, outro seguindo o rastro do um, até que segredo que era não fosse mais. Sabendo o que sabiam, sem saberem que o outro sabia, voltaram cada um pra seu canto e pensaram, pensaram, pensaram... até que tiveram uma idéia... não, não tiveram... cada qual a seu modo, pensou, pensou... até que tiveram outra idéia... mas, não era boa o bastante... cada um em seu canto ficou até que... sim! Tiveram um plano! Idiota, no entanto.

Decidem acabar com o bem alheio. O idiota de chapéu prepara uma bomba e segue para a caverna onde brota a água, o outro segue em busca do pássaro. O primeiro idiota põe a bomba e se prepara para explodir...

– Enquanto isso, um outro idiota, não muito longe dali...

O idiota de sapatos pega o pássaro pelo pescoço. A ação ocorre simultânea: a caverna explode, o pássaro morre.

– E quando cada um voltou pro canto que era seu, cada qual, a seu modo, se espantou. Foi grito, foi choro, tristeza e revolta. Solução para os idiotas era uma só. E trataram de esconder, bem escondido, o bem que lhes ainda restava.

Eles escondem as sementes e a água no mesmo pouco de terra, na mesma pequena arca.

– Os idiotas, assim, decidiram pelo desafio, porque um era um e outro era outro; e se detestavam.

Encaram-se, voltam-se as costas e contam os passos. O deserto é todo essa tensão. Estampido. Começa o duelo idiota até que se matem.

– Sob o sol, naquela terra que não era, os dois idiotas. Sob a terra, semente e água. Se, ali, naquele pequeno chão, a vida começou a ser, ou não... isso é história pra além da história. O importante já foi contado aqui. A história é tola, mas assim foi o acontecido.

A procissão segue, miúda, cruzando o deserto...

 
*Prêmio de melhor texto no V Festival de Esquetes Elbe de Holanda, RJ.

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