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sábado, 27 de fevereiro de 2010

Entre paredes e ondas

"Horizonte é onde o fio do tempo, estendido, pára. Longo, calmo. Ou paira. O homem não tem certeza. Apenas uma letra entre a pá e a terra. Uma semente e o sol é solo. O homem, só, é muito mais deus, bem mais próximo, até secar."

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Ele bebeu um copo apenas,
os outros foram mergulhando
nele como os rios correm
para o mar. Esqueceu assim
os problemas, esqueceu também
que não tem sono e do teto
que lhe aguarda calmo.
Deixou troco ao garçom
e urina fora do vaso,
cambaleou pelas ruas
segurando as casas que
giravam em volta de si.
O mundo entornou.
Entornou o caldo,
o caldo o afogou.
As mágoas, as tristezas todas, tolas,
ele bebeu, derramou e
gargalhadas torpes o fizeram
dormir - sono de bêbado.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

vazada a página de mais um dia

Difícil saber onde pisa, saber estar onde pisa. O homem sente esta dor. Chega ao outro lado e não há diferença. Ele próprio não responde que lugar aquele. Quer colocar palavras em todo canto, simular naufrágios ou paredes onde encerrar o que não sabe ser. Nada faz sentido. Tudo é sentido. As palavras cabem e acabam. Mal acabadas, desmoronam. Pensa em comer, letra a letra, todos os vocábulos. Não existe, no entanto, quem os diga. Uma pequena esfera sem paredes para ricochetear: ele.

(em Entre Paredes e Ondas)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

despertamento

- Aquele que amanhece é o que será, tem muitas horas pela frente, todo um dia a se cumprir e virá e verá e virão, outro e outros, e outros, e.
Assim pregou a palavra anterior à palavra, ensinando.

"Nada é por acaso, nada é
dom, tudo apenas despertamento..."

(do conto Despertamento, em Entre Paredes e Ondas)

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

uma beira de praia
um pé de montanha
paisagem qualquer
mar que desenrola
vento que alisa rosto
um balanço de verde
céu por teto infinito
por chão um silêncio
cheio do sentir junto
braços nossos enlaçados
suspiro reponde outro
a paisagem estando
estando nós na paisagem
que está quase pretexto
para estarmos apenas
estar como quem está
querer o querer assim
e o silêncio cheio
dos minutos leves
do querer sem fim

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

caminhando sem cantar, seguindo sem canção

Meus pés vagueiam por aí sem sabedoria alguma, frescos, vestidos da sandália de borracha de palma bran-ca onde, encardidos, se desenham meus dedos. Respirando as horas soltas do fim de semana, despidos do abafado ritmo de sapatos e meias, sem os passos apressados, o vai-e-vem, o sobe-e-desce de degraus, os meus pés passeiam distantes de qualquer pensamento. Caminham como quem caminha, mas não feito Caminha — escrevendo retratos daquilo que vê; anunciando tal qual inseto parasita a toda sua raça, as novas riquezas, o sangue novo para sorver, as novas terras para alimentar a praga, o campo aberto para alargar seus vícios. Não. Eles andam sem reparar belezas ou tentar julgamentos; sem buscar Eldorado, sem sonhar Atlântida. Pisam, passam. Não pensam em nada. Pisam asfalto, pedra, areia, uma formiga e outra. E a folha solta de um jornal qualquer que pára, ao acaso, sob o meu peso trazendo, talvez, uma boa notícia, um novo conhecimento que os pés não lêem, pisam. Pisam com o desinteresse do jovem por aquilo que o tempo já amareleceu.


São estes pés novos, deste tempo novo, que saltam o corpo bêbado na calçada. Aliás, não somente os meus pés como também eu e todas as outras pessoas que esperam, plantadas sobre seus respectivos pés, a condução no ponto-de-ônibus em frente. Todos parecem ver aquela imagem entorpecida, inerte, suja, deitada no preto e branco das pedras da calçada, com o mesmo olhar cansado e desatento que passamos pelas notícias já banais de tão repetidas, mesmo em se tratando da desgraça humana.

Por que alguém haveria de se ocupar daquele homem se, afinal, ele dorme o profundo sono de bêbado e sua tempestade só virá quando acordar de ressaca? Por que não deixá-lo tranqüilo como está, respirando a manhã que vasa calma, sem sol nem chuva, branca como as pedras, como a palma da sandália, ou as paredes frias do meu quarto onde me refugio para fazer crônicas que não mudarão nada. Branca como a tela do computador e a página que eu enfeito, ou sujo, com letras negras; negras como a marca dos meus dedos na palma branca da sandália. Nódoas negras como as pedras que fazem a calçada, como a sombra que trazemos todos; negras como os olhos da noite que se anuncia com a ameaça de chuva em suas nuvens cinzas. Cinzas como o pó que, invariavelmente, nos tornamos.

*do livreto "Cronicas de Outono e outras folhas".